UMA PITADA DO HODIERNISMO DO PENSAMENTO DE AGOSTINHO NETO

OLHANDO DE NOVO SOBRE PROBLEMAS DO SÉCULO PASSADO

– o retrovisor da História pode orientar-nos no presente

 

Submeto este incisivo poema à vossa reflexão. Este escrito parece estar endereçado a todas as pessoas, a todos os povos, de todos os tempos. Vale a pena dar o nosso contributo para que não mais os poetas tenham de escrever palavras como estas, que parecem ter sigo gravadas com o vermelho do sangue derramado, retocadas com a revolta do suor dos explorados de todo o mundo e  requintadas com as lágrimas interrogativas de quem, na ausência de resposta, olha para o céu a espera de uma resposta que nunca chega.

 

Eventualmente, muitos dos problemas retractados por Agostinho Neto neste poema continuam sendo actuais, embora com uma face diferente. Tendencialmente ultrapassada a barreira da pigmentação, agora enfrentamos uma barreira mais complicada: a dos cifrões e de outras conexões e indexações simpáticas ao  patrimonismo. O pior é que este tipo de discriminação é mais difícil de provar. WA PI UBUNTU… onde estás humanidade?

«Negação

 

By: Agostinho Neto

Não creio em mim/Não existo/Não quero/ eu não quero ser /Quero destruir-me/atirar-me de pontes elevadas/e deixar-me despedaçar/sobre as pedras duras das calçadas /Pulverizar o meu ser/desaparecer /não deixar sequer/traço de passagem /pelo mundo/quero que o não-eu/se aposse de mim

Mais do que um simples suicídio/Quero que esta minha morte/seja uma verdadeira novidade histórica/um desaparecimento total/até mesmo nos cérebros/daqueles que me odeiam/até mesmo no tempo/e se processe a História/e o mundo continue/como se eu nunca tivesse existido/como se nenhuma obra tivesse produzido/como se nada tivesse influenciado na vida/se em vez de valor negativo /eu fosse zero/Quero ascender/elevar-me até atingir o Zero/e desaparecer

Deixai-me desaparecer!

Mas antes vou gritar /Com toda a força dos meus pulmões/Para que o mundo oiça:

– Fui eu quem renunciou a Vida! /Podeis continuar a ocupar o meu lugar/Vós os que mo roubastes/Aí tendes o mundo todo para vós/para mim nada quero/nem riqueza nem pobreza/nem alegria nem tristeza/nem vida nem morte/nada /Não sou Nunca fui/Renuncio-me/Atingi o Zero/

E agora/vivei cantai chorai/casai-vos matai-vos embriagai-vos/dai esmolas aos pobres/Nada me pode interessar/que eu não sou/Atingi o Zero/Não contem comigo/para vos servir as refeições/nem para cavar os diamantes/que vossas mulheres irão ostentar em salões/nem para cuidar das vossas plantações
de algodão e café/não contem com amas/para amamentar os vossos filhos sifilíticos/não contem com operários de segunda categoria/para fazer o trabalho de que vos orgulhais/nem com soldados inconscientes/para gritar com o estômago vazio vivas ao vosso trabalho de civilização/nem com lacaios/para vos tirarem os sapatos de madrugada/quando regressardes de orgias nocturnas/nem com pretos medrosos/para vos oferecer vacas
e vender milho a tostão/nem com corpos de mulheres/para vos alimentar de prazeres/nos ócios da vossa abundância imoral

Não contem comigo/Renuncio-me/Eu atingi o Zero/E agora podeis queimar
os letreiros medrosos/que às portas de bares hotéis e recintos públicos
gritam o vosso egoísmo/nas frases “SÓ PARA BRANCOS” ou COLOURED MEN ONLY”/Negros aqui brancos acolá/E agora podeis acabar
com os miseráveis bairros de negros/que vos atrapalham a vaidade/Vivei satisfeitos sem colour lines/sem terdes que dizer aos fregueses negros/que os hotéis estão abarrotados/que não há mais mesas nos restaurantes

 
Banhai-vos descansados /nas vossas praias e piscinas/que nunca houve negros no mundo/que sujassem as águas/ou os vossos nojentos preconceitos/
com a sua escura presença

Dissolvei o Ku-Klux-Klan/que já não há negros para linchar!

Porque hesitais agora!/ao menos tendes oportunidade/para proclamardes democracias/com sinceridade/Podeis inventar uma nova história/inclusivamente podeis inventar uma nova mística/direis por exemplo:/ No princípio nós criamos o mundo/Tudo foi feito por NÓS/E isso nada me interessa

Ah!

Que satisfação eu sinto/por ver-vos alegres no vosso orgulho/e loucos na vossa mania de superioridade/Nunca houve negros!/A África foi construída só por vós/A América foi colonizada só por vós/A Europa não conhece civilizações africanas/Nunca houve beijos de negros sobre faces brancas/nem um negro foi linchado /nunca matastes pretos a golpes de cavalomarinho/para lhes possuirdes as mulheres/nunca estorquistes propriedades a pretos/não tendes nunca tivestes filhos com sangue negro/ó racistas de desbragada lubricidade

Fartai-vos agora dentro da moral!

Que satisfação eu sinto/por não terdes que falsear os padrões morais/para salvaguardar/o prestígio a superioridade e o estômago/dos vossos filhos

Ah!

O meu suicídio é uma novidade histórica/é um sádico prazer/de ver-vos bem instalados no vosso mundo/sem necessidade de jogos falsos

Eu elevado até o Zero/eu transformado no Nada-histórico/eu no início dos tempos/eu-Nada a confundir-me com vós-Tudo/sou o verdadeiro Cristo da Humanidade!

Não há nas ruas de Luanda/negros descalços e sujos/a pôr nódoas nas vossas falsidades de colonização/Em Lourenço Marques/em New York em Leopoldville/em Cape Town/gritam pelas ruas/fogueteando alegrias nos ares/- Não há negros nas ruas!/Nunca houve/Não há negros preguiçosos/a deixar os campos por cultivar/e renitentes à escravização/já não há negros para roubar/Toda a riqueza representa agora o suor do rosto/e o suor do rosto é a poesia da vida/Viva a poesia da vida!/Viva!

Não existe música negra/Nunca houve batuques nas florestas do Congo/Quem falou em spirituals?/Os salões enchem-se de Debussy Strauss Korsakoff/que não há selvagens na terra/Viva a civilização dos homens superiores/sem manchas negróides a perturbar-lhe a estética!/Viva!

Nunca houve descobrimentos/a África foi criada com o mundo

O que é a colonização?/O que são os massacres de negros?/O que são os esbulhos de propriedade?/Coisas que ninguém conhece/A história está errada/Nunca houve escravatura/Nunca houve domínio de minorias /orgulhosas da sua força/Acabei com as cruzadas religiosas/A fé está espalhada por todo o mundo/sobre a terra só há cristãos/VÓS sois todos cristãos /Não há infiéis por converter/Escusais de imaginar mais infidelidades religiosas/para justificar repugnantes actos de barbarismo

Não necessitais enviar mais missionários a África /nem nos bairros de negros/Nunca houve mahamba /nem concepções religiosas diferentes/
nunca houve religiosos a auxiliar a ocupação militar

Acabai com os missionários /os seus sofismas/os seus milagres/inventados para justificar ambições e vaidades

Possuis tudo TUDO /e sois todos irmãos/Continuai com os vossos sistemas políticos/ditaduras democráticas/isso é convosco/Explorai o proletariado/matai-vos uns aos outros/lutai pela glória/lutai pelo poder/criai minorias fortes/apadrinhai os afilhados dos vossos amigos/criai mais castas/aburguesai as ideias/e tudo sem a complicação/ de verdes intrusos/imiscuir-se na vossa querida e defendida civilização de homens privilegiados

E agora/homens irmãos/daí-vos as mãos/gritai a vossa alegria de serdes sós
SÓS!/únicos habitantes da terra

Eu atingi o Zero

Isto significa extraordinariamente a vossa ética/Ao menos/não percais a ocasião para serdes honestos/Se houver terramotos/calamidades cheias ou epidemias/ou terras a defender da evasão das águas/ou motores parados em lamas africanas/raios vos partam!/já não tereis de chamar-me/para acudir as vossas desgraças/para reparar os vossos desastres/ou para carregar com a culpa das vossas incúrias/Ide para o diabo!

Eu não existo/Palavra de honra que nunca  existi/Atingi o Zero/o Nada

Abençoada a hora/do meu super-suicídio/para vós/homens que construís sistemas morais/para enquadrar imoralidades/O sol brilha só para vós/a lua reflecte luz só para vós/nunca houve esclavagistas/nem massacres/nem ocupações da África

Como até a história/se transforma num tratado de moral/sem necessidade de arranjos apressados! /Os pretos dos cais não existem/Nunca foram ouvidos cantos dolentes/misturados com a chiadeira do guindaste/Nunca pisaram os caminhos do mato/carregadores com sem quilos às costas/são os motores que se queimam sob as cargas

Ó pretos submissos humildes ou tímidos/sem lugar nas cidades/ou nos escaninhos da honestidade/ou nos recantos da força/dançarinos com a alma poisada no sinal menos/polígamos declarados/dançarinos de batuques sensuais/Sabeis que subistes todos de valor/atingistes o Zero sois Nada
e salvastes o homem

Acabou-se o ódio/e o trabalho de civilização/e a náusea de ver meninos negros
sentados na escola/ao lado de meninos de olhos azuis/e as extorsões e compulsões/e as palmatoadas e torturas/para obrigar inocentes a confessar crimes/e medos de revolta/e as complicadas demarches políticas/para iludir as almas simples

Acabaram-se as complicações sociais!/Atingi o Zero/Cheguei à hora do início do mundo/e resolvi não existir/Cheguei ao Zero-Espaço/ao Nada-Tempo /ao eu coincidente com vós-Tudo

E o que é mais importante:

Salvei o mundo! »

Sempre a considerá-lo(a),

António Kassoma “NGUVULU MAKATUKA”

Fonte: http://www.agostinhoneto.org

 

Esta entrada foi publicada em O MUNDO EM QUE VIVEMOS. ligação permanente.

6 respostas a UMA PITADA DO HODIERNISMO DO PENSAMENTO DE AGOSTINHO NETO

  1. Luis diz:

    Bom dia Amigo Makatuka. Eu já lhe tinha expressado a minha admiração pela figura de Agostinho Neto. Como bem diz; os objectivos que ele preconizava, estão realizados. Mas o dinheiro não tem cor… circula por aí para quem sabe manobrá-lo e possuí-lo. Abraço Luís Sio

  2. Nguvulu diz:

    Grande Luís SioObrigado pelo teu comentário amigo. Também acho que não há mal nenhum no dinhero. O que não posso concordar é que esta a crescer a tendência de colocar o dinheiro acima dos seres humanos. Se fizermos uma brincadeira e substituirmos "negro" por "pobre" no poema de Agostinho Neto, tenho a certeza que o texto estará tão rejuvenescido que parecerá ter sido escrito no dia anterior. Tropecei hoje nesse texto e me ocorreu que valeria a pena convidar os amigos a pensar nele, mutatis mutandis… Aquele abraço

  3. Alpha diz:

    Caríssimo amigo Nguvulu, penso como você: “o retrovisor da História pode orientar-nos no presente”. E vou além: pode e deve. Neste “carro” – em que dirigimos apressados na estrada de nosso presente – por vezes tenho a impressão que, descuidadamente, descuramos de nossa responsabilidade para com a construção da História… desviâmo-nos dos obstáculos da estrada e sequer pensamos no porquê de a estrada estar esburacada… Seguimos apressados um mesmo caminho desatentos dos avisos que deveriam nos orientar…Deveríamos todos ler, reler avisos na História. O “suor dos explorados” continua a escorrer dos corpos cansados; rubros/inocentes/quentes sangues ainda escorrem nos solos que sepultam os bons e os maus… Ainda há muitas grossas lágrimas – pontos de interrogação sulcando faces descrentes; é preciso mais poetas a gritar aos povos (pois que sua linguagem é universal) a inconformação com o injusto, com a exploração do homem pelo homem.O retrovisor do passado revela-nos quanto sangue , quantos atos de selvageria há na História, quanto de mentiras foram alçadas à categoria de verdades; e hoje, mesmo que não nos apercebamos disso, cá estamos nós a continuar a escrevê-la com a caligrafia de nossos ideais, nossas certezas (ou certezas de outrem)…O pensamento do primeiro presidente de Angola, Agostinho Neto, pode sim servir à uma leitura dos atuais problemas,que, penso, não só Angola está a passar e sim, toda a parcela da sociedade inserta na intrincada rede da globalização econômica. Agora, com uma roupagem nova, os problemas contudo, têm o mesmo molde. Se à época de Agostinho o dedo apontava para o colonizador, hoje os explorados (e até mesmo o antigo colonizador) têm-se diluído na gigantesca massa da neo exploração: a dos “cifrões”, como você denominou.A neo exploração impõe o pior dos jugos porque é aceita. Justifica a exploração e justifica-se no próprio íntimo do explorado. Justifica o descalabro da dependência entre povos livres,e é um jugo tão sutil que passa despercebido no imaginário consumista que nos é imprimido desde tenra idade… Em nome de um suposto prazer proporcionado pelo ter, espezinham-se dignidades no endividamento, alonga-se a distância entre ricos e pobres, emburrece-se a Razão.Que os jovens releiam Agostinho Neto! E que também lhe tomem o exemplo pessoal! Se hoje não mais é discutida, ansiada uma independência política, é urgente, porém, que se discuta as dependências outras do pós colonialismo. Se a poesia de Agostinho era um discurso de libertação, um libelo contra a exploração de corpos (do corpo-mãe africano), hoje urge analisar sob sua fala-protesto outras formas de reificação. O trecho aqui escolhido (de A Renúncia Impossível), extremamente irônico, deveria servir para uma reflexão acerca do processo de cicatrização da ferida colonialista. Penso que a cicatrização é superficial e há chagas na alma também. Penso também que os novos tempos exigem novos pensadores, que detectem com sensibilidade médica as novas feridas que já estão a aparecer nos corpos dos homens-nações.O colonialismo deixou um legado de uma identidade distorcida, mal reconhecida, de parâmetros externos. No Brasil, como aí, nos povos colonizados, após o período eufórico da independência política, respira-se um certo mal estar, vive-se uma incômoda inquietude na redescoberta de si mesmo enquanto povo. É preciso uma acomodação ao novo perfil, à uma nova mentalidade. Esse é um dos períodos onde a crise poderá ser bastante benéfica, caso não se renda o povo à uma servidão consentida. Explico melhor: a luta pela sobrevivência leva povos a se violarem e a serem violados sob novos parâmetros. A teia internacional das relações econômicas cria vínculos e parcerias desiguais, promove um aparente bem estar às custas da desigualdade social. Este aparente bem estar se desmascara particularmente nas grandes cidades em que convivem quase lado a lado a miséria e a riqueza. E se evidencia no discurso do consumismo, do “ter” sobrevalorizado em relação ao “ser”.E por isso Agostinho Neto deve ser relido. Ainda é atualíssimo seu pensamento. Sua sarcástica, severa crítica denuncia a dupla moral, os valores impostos como certos. O poeta amalgamou-se ao poema; que hoje o povo questione o novo deus: o deus-mercado …O sentimento de nilificação tão bem demonstrado no trecho desta sua poesia é mais que hodierno: penso que é visceral!Não devo me alongar mais nestas minhas ponderações. Devo sim parabenizá-lo mais uma vez pela escolha dos temas que coloca neste blog. É sempre muito prazeroso estar aqui e poder externar meu pensamento. Deixo-lhe meu sincero e fraternal abraço, meu bom amigo.

  4. Luis diz:

    Olhe Amigo, embora este poema do Dr. Agostinho Neto, seja sublime na luta contra a exploração… acho que hoje, seus desejos e objectivos, estão cumpridos. Aleluia. Agora, cabe a cada Povo saído da Colonização, tocar sua vida para a frente e não "choramingar do passado como fazem alguns Brasileiros que, ainda hoje; 200 anos depois se escudam com a "rapinagem" dos Portugueses para justificarem o seu estado de atraso.Felizmente que o actual Presidente do Brasil, já se deixou de lamurias e hoje em dia, o Brasil está com um progresso económico enorme…Todos temos que andar para diante e não repisar-mos o passado. A exemplo; Portugal também poderia atribuir o seu atraso a Castela que nos manietou durante muitos anos.Mas que nada: até apresentaram uma candidatura ao Mundial de Futebol ! Não sei para que ano… de futebois… entendo pouco… mas o que queria frisar, é que o passado é passado e a vida segue para a frente e nunca retrocede.Abraço do Nguxi

    • Meu caro e irmão Kassoma=Principepe, agradesso-te por me teres dado a oportunidade de revisitar esta carta “MAGNA”, hoje no tempo certo, pós era ainda muito garoto quando a lí pela primeira vez a segunda vez já era adulto mas, incapaz de alcansar o espirito do autor, alias é a primeira vez que o leio calmo e sereno e completo… e se todos os povos tivessem direito ao seu cristo NETO seria certameto Wetu= o nosso; parece que desde o Principio só ele sabia o que se pretendedia realmente deste país com paixão com verdade, com sorrir com lagrimas, e sobretudo com lealdade e patrotismo puro, com humanidade e HUMANISMO… tu casi pá mossi….

  5. MBANDANGO diz:

    Sublime! e ainda ha quem o considere um poeta MEDÍOCRE! obrigado pela partilha Nguvulu…

Deixe uma resposta para Luis Cancelar resposta